No discurso feito em 1999, ao receber da Câmara Municipal o título de Cidadão Porto-Alegrense, o ator Paulo José, que ajudou a criar o Teatro de Equipe, lembrou do Viaduto Otávio Rocha e da cidade de Porto Alegre. Paulo José foi casado com Dina Sfat.
“Eu me lembro do meu primeiro
encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite. Eu
cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de
Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental,
maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas,
mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto
Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais
impressionantes: a Piazza San Marco, em Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de
Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração
disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu
primeiro alumbramento.
Eu me lembro que o Pão dos Pobres
ficava nas margens do Guaíba, lá onde a cidade acabava. Eu me lembro que a
lancheria das lojas Americanas era o ponto chique da cidade. Eu me lembro que
tinha até banana split. Eu me lembro que eu sabia de cor todas as transversais
da Avenida Independência, do Colégio Rosário à Praça Júlio de Castilhos: Rua
Barros Cassal, Rua Thomaz Flores, Rua Garibaldi, Rua Santo Antônio, Rua João
Telles. Eu me lembro da Pantaleão Teles, da Cabo Rocha, American Boite, Maipu,
Gruta Azul. Eu me lembro do conjunto Norberto Baldauf, da Orquestra Espetáculo
Cassino de Sevilha, do Conjunto Farroupilha, dos Quitandinha Serenaders:
'Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda chora...' Lembro da
tristeza da minha mãe quando emprestei o violão do meu irmão para um baiano que
estava passando uns tempos aqui em Porto Alegre. Eu me lembro que o meu violão
nunca mais voltou e que o baiano se chamava João Gilberto.
Lembro do Hino Rosariense. Lembro
que Maria Della Costa era garota da capa da revista O Globo, e tinha as pernas
mais lindas do mundo. Lembro dos festivais Tom & Jerry nas manhãs de
domingo no cinema Avenida, das matinês do Cinema Victória, dos cinemas Rex,
Roxi, Imperial, Cacique. Lembro do mezanino do Cinema Cacique, que servia a
última novidade em gelados, o Peach Melba. Lembro que todo o mundo detestava os
filmes do Cecil B. de Mille, exceto o público.
Lembro que no abrigo dos bondes
da Praça XV podia-se beber o caldo da salda de frutas, sem frutas, apenas seus
vestígios. Aquela água era néctar dos deuses. Lembro do Vicente Rao, do
Bataclan, do brique Ao Belchior, do Senhor Joaquim da Cunha, do Farolito e do
China Gorda.
Lembro que pela margem direita
eram o Javaí, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, e pela esquerda o Japurá,
Negro, Trombetas, Paru e Jarí. Eu me lembro que meus professores diziam que
ensinamentos como esses seriam de grande utilidade para a vida. Lembro do irmão
Ary, professor de Biologia, recusando-se a falar da teoria de Darwin: 'Quem
quiser que descenda do macaco, eu descendo de Adão e Eva'. lembro que ele nos
preparava para o vestibular de Medicina. Eu lembro do Pervitin que a gente
tomava para passar a noite estudando e tirava nota ruim no dia seguinte.
Lembro do rodouro metálico e seu
jato gelado que fazia tudo girar. Lembro do Gin Fizz, do Hi-Fi, do Alexander,
da mistura de Coca-Cola com cachaça que levava o nome apropriadíssimo de Samba
em Berlim. Lembro do footing da Rua da Praia, onde a gente exibia a camisa
volta-ao-mundo, de nylon, e que diziam que iria revolucionar o vestuário
masculino. Lembro das calças de brim-coringa farwest.
Lembro que a deusa da minha rua
era a Maria Thereza Goulart, que não era ainda Goulart. Ela morava no edifício
Glória e recebia visitas misteriosas de um João, este, sim, Goulart, que era
invejado por toda a garotada da Barros Cassal.
Eu me lembro do tempo em que
futebol se jogava com goleiro, com dois beques, três na linha-média e cinco no
ataque e que, em geral, faziam-se gols. Eu me lembro do time do Inter,
imbatível, nos anos 50: La Paz, Florindo e Oreco, Paulinho, Salvador e Odorico,
Luizinho, Bodinho, Larry e Canhotinho.
Eu me lembro de um tempo sem
malícia, quando o estádio dos Eucaliptos torcia, gritando em coro:
Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado. Eu me lembro do Café Andradas,
onde a gente ia matar aula e encontrava o Henrique Fuhro. O Abujamra, que anunciava
tragicamente: 'O homem é uma paixão inútil!...Mais um café, Macedo'.
Eu me lembro do Bar Matheus, na
Praça da Alfândega, da Pavesa, do Treviso, da cadeira pendurada na parede, onde
sentou Chico Viola. Da sopa, do mocotó levanta-defunto do mercado Público, do
sanduíche-aberto do Bar Líder, daquela mostarda amarela do Galeto do Marreta e,
por fim, do cachorro-quente da praça do Colégio Nossa Senhora do Rosário, sem
favor nenhum, o melhor do mundo.
'O sabonete Cinta-Azul tem o
prazer de apresentar um novo filme de caubói Bat Masterson, Bat Masterson'.
'Phimatosan, quando você tossir, Phimatosan,
se a tosse repetir'.
'Ela é linda, ah! É noiva, oh!
Usa Ponds, Aaah!'.
'Eu me lembro do desodorante para
privadas Desodor, 'Libera o ambiente dos odores estranhos', do Detefon, do
espiral Boa-Noite, da cera Parquetina, da creolina Cruswaldina, do formicida
Tatu.
Eu me lembro que o Jeca Tatu
tinha verminose, era pálido, maltrapilho, preguiçoso e roubado pelo patrão. E
era um herói nacional... Eu me lembro das missas rezadas em latim, dos padres
de batina e do seu indisfarçável sotaque da Colônia: 'caríssimos irmãos em
Nosso Senhor Jesus Cristo! Naquele tempo, vindo Jesus com os seus
discípulos'...
Eu me lembro da Glostora, da
Antisardina, “O segredo da beleza feminina”, Odorono, Cashmere Bouquet, 'O
aristocrata dos produtos femininos', Lusoform Primo, poderoso desinfetante
contra frieiras, pé-de-atleta, CC – cheiro de corpo, mau hálito e pós-barba..
Eu me lembro de um perfume da fábrica Colibri, Água de Cheiro Amor Gaúcho.
Eu me lembro de Ildo Meneghetti,
o candidato invencível, e me lembro de sua quase absurda honestidade, quando
declarou: 'Meu maior erro foi ter derrotado Alberto Pasqualini, ele tinha um
plano de governo e eu, não'.
Eu me lembro do dia 24 de agosto
de 1954. A morte de Getúlio se alastrando pela cidade, incendiando a Rádio
Farroupilha, empastelando o Diário de Notícias, destruindo a sede da UDN,
depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas,
até a American Boite..
Eu me lembro do P.F. Gastal,
criador do Clube de Cinema e que me apresentou a alguns gênios da tela. Um
deles, contava Gastal, se apresentou para uma plateia de apenas quatro pessoas,
em Berlim, dizendo: 'Sou ator de teatro, cinema, escrevo contos, programas de
rádio, TV, dirijo filmes, peças, sou ventríloquo, ilusionista, mágico. Pena eu
ser tantos e vocês tão poucos. Meu nome é Orson Welles'.
Eu me lembro do Teatro de Equipe,
na General Vitorino, do Teatro de Belas Artes, na Senhor dos Passos, e da
Confeitaria Atlântica, na Praça Dom Feliciano, ponto de encontro e desencontros
dos artistas do Theatro São Pedro. Eu me lembro que nós, Luiz de Matos, Ivete
Brandalise, Peréio, Nilda Maria, Mário de Almeida e tantos outros,
trabalhávamos como diretores, cenógrafos, figurinistas, maquiadores,
contra-regras. Eu me lembro que, às vezes, eu tinha a sensação de que éramos
tantos e vocês tão poucos... Mas, eu me lembro que 'qualquer prazer me diverte
e qualquer china me interte!'
Eu me lembro que a Livraria do
Globo era uma loja que vendia livros... Eu me lembro do Loxas, do Janjão, do
Sunda... Mas, sobretudo, eu me lembro do Mário, aquele... Eu me lembro que:
“Não adianta bater, que eu não deixo você entrar”.
Eu me lembro da Emulsão de Scott,
do Calcigenol Irradiado, do Peitoral de Angico Pelotense, da Pomada Minâncora,
das Pílulas de Vida do Dr. Ross, 'fazem bem ao fígado de todos nós', do
Regulador Xavier, 'vive melhor a mulher', do Pó Pelotense, do vinho
reconstituinte Silva Araújo, 'V de Vida, R de resistente, S de saúde e A de
alegria'. do rum Creosotado e dos reclames dos bondes da Carris: 'Veja, ilustre
passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado, e, no entanto,
acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado'.
Eu me lembro, sempre, de não
confundir capitão-de-fragata, com cafetão-de-gravata. Eu me lembro que até os
craques da locução confundiam “alhos com bugalhos”. Ernani Behs, a máxima voz
da Rádio Farroupilha, uma noite anunciou, solenemente: “Transmitindo do alto do
Viadeiro Borges de Meduto...”. Eu me lembro que 'Bartolo tinha uma flauta, a
flauta era do Bartolo, sua mãe sempre lhe dizia: toca a flauta meu Bartolo”.
'Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão no...'.
Eu me lembro que: 'Até a pé nós
iremos, para o que der e vier...'. Eu me lembro de que não foi exatamente a pé,
mas atravessando o mundo, de avião, que o Grêmio conquistou o Campeonato
Mundial de Clubes. Do show de bola do Renato, Mário Sérgio e demais heróis
tricolores. 'Até o Japão nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que
nós estaremos.'
Eu me lembro que: 'O pensamento
parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar...'
Eu me lembro do Programa Maurício
Sobrinho, do Clube do Guri e de uma caloura que diziam ser a nova Ângela Maria.
Eu me lembro que ela morava na zona Norte e se chamava Elis Regina. Eu me
lembro de uns versos:
'Elis, quando ela canta me lembra
de um pássaro,
Mas não é um pássaro cantando,
Me lembra um pássaro voando'.
Eu me lembro de uns quintanares:
'Olho o mapa da cidade
como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem fosse o meu corpo).
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas rua que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando for, um dias desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade do meu andar
(Deste já longo andar!)
E talvez do meu repouso...'
Eu me lembro de que o Viaduto
Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Era guri de Lavras, chegando
nesta Cidade Grande. Esta cidade que me acolheu. Nela cresci, me fiz homem,
aprendi ofício. Devo isso tudo a Porto Alegre. Hoje realizo uma fantasia de
adolescência: ser porto-alegrense. Hoje, eu sou um cidadão da cidade que tem o
Viaduto Otávio Rocha, orgulhosamente.
Agradeço a homenagem que me
emociona, me toca fundo no coração. Eu sempre lembrarei disso, sempre
lembrarei, e me lembrarei.
Obrigado."
Paulo José
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Foto panorâmica
Manifestantes expõem faixas pedindo a revitalização
humana do local
http://www.defender.org.br/porto-alegre-moradores-protestam-contra-abandono-do-viaduto-otavio-rocha/
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